terça-feira, 8 de junho de 2010

Filmagem é uma coisa, pescaria é outra

O drama da (re)produção e do arquivamento digital. Do Blog da O2.
http://blog.o2filmes.com/2010/05/31/dialogando-com-o-novo-a-discussao/

(e-mail de Fernando Meirelles e outro de Umberto Martins)

Caros,

Na quinta feira passada fizemos uma reunião aqui na O2 sobre a nossa pós e entre outros assuntos nos foram dadas duas informações curiosas:

1 - A O2 completou este mês um petabyte de capacidade de memória, isso é 4 vezes mais do que a memória da UOL ou 1/4 do que tem o Google mundial. Não é pouco.

2 - Falta memória disponível na O2.

Diante desta situação paradoxal foi feito um levantamento e vimos que quando rodávamos em película os filmes obedeciam uma proporção média de aproveitamento de 35 para um. Para digitalizar este material rodado gastávamos 1 hora mais ou menos. Ao passar para o mundo digital nossos filmes saltaram para uma média de 550 para um ( neste mês houveram 2 projetos onde foi rodado 1.000 para 1) Para digitalizar material rodado em digital é preciso 3 vezes mais tempo do que o que é telecinado pois o rendering/conformação é lento e depois disso ainda ha a digitalização normal. Ou seja, estamos rodando 16 vezes mais material e gastando 100 vezes mais horas de equipamento por projeto, fora o material bruto que para ser arquivado em LTO, precisa de mais 3 vezes o tempo do material para a nova conformação.

Além do problema de memórias astronômicas, rodar esta infinidade de material tem criado um segundo gargalo, o trânsito destas imagens. (para não falar na infelicidade dos montadores que trabalham muito mais e fazem filmes piores pois gastam 90% do seu tempo jogando fora o lixo e apenas 10% montando). Para resolver estes problemas vimos dois caminhos: Sair comprando mais máquinas para dar conta deste fluxo ou racionalizar o fluxo. Vamos fazer um pouco das duas coisas.

Das novas máquinas o Paulo Barcelos e o Tamis estão se encarregando, este email é para propor uma maneira de diminuirmos a produção de lixo imagético, vamos chamar assim. Proponho abaixo uma pequena mudança no nosso método de trabalho. Vamos lá:

O MÉTODO:

1 - No mundo digital não faz mais sentido nos referirmos as nossas tomadas como se fossem filmadas. Faremos uma nova claquete onde deve constar o número do cartão ao invés do rolo, o número do clipe gerado pela câmera no lugar do take e o número da cena como é hoje. ( podemos manter um espaço para colocar o número de take de cada cena para quem acha que começar sempre do 1,2,3… ajuda a rever o material no set .)
A primeira decisão: De hoje em diante todo mundo usa os mesmos números. O som direto canta a cena, o número do cartão e o número do clipe não mais a cena, o rolo, e o take. “- Cena 4, cartão 2, clipe 23…ação.”
obs - O número do clipe gerado pela câmera vem com umas letrinhas tipo AZX 023. O que vale é sempre o número final: 23.

2- Ao final de cada take o diretor deve avisar ao video-assist ou ao assistente que está anotando a planilha do relatório se o take rodado deve ser logado ou não. Esse é o grande momento mágico que vai fazer toda a diferença.
Sábado eu e o Paulinho testamos isso em dois filmes de Bradesco e reduzimos o volume de material logado para 1/5 !!! O Marcelinho e o Saulo quiseram nos beijar quando receberam o material sem lixo para montar. ( mas nós não deixamos).
A segunda decisão: Voltar aos anos 60 quando no set o diretor tinha que dizer ” Copia”, ao final de cada take que lhe parecesse razoável. O assistente escreve na planilha e passa para o loger selecionar o que vai para a montagem.

3 - Apesar dos takes bons estarem sendo logados numa pasta que vai para o montador,o material bruto vai também ser guardado caso aconteça alguma coisa ou seja preciso ver mais material. Este bruto no entanto não passará por todo o processo de conformação, digitalização etc. É um back-up que vai ser apagado assim que o filme for ao ar.
A terceira decisão: O logger deve fazer duas pastas. Uma com o material logado e outra com back-up do bruto. Só a primeira segue todo o processo.

4 - Com a gravação digital, muitos sets praticamente aboliram a palavra “corta”. Como a câmera só registra um novo número de clipe quando é cortada, apesar de ser chato, é fundamental que depois de cada erro diga-se “corta”, para que o que foi gravado até então, o lixo, seja jogado fora. Cortar entre cada take é também importantíssimo para ajudar o trabalho do montador. Sem isso os clipes ficam imensos, cheios de gordura e dificultam muito todo o processo que se segue: Logar, conformar, digitalizar, montar e conformar para LTO para arquivar.
A quarta decisão: Corte sempre após cada erro ou entre cada novo take. Perde-se um tempinho no set e salva-se um tempão em todo o resto do processo.

5 - O luxo dos luxos, optativo mas recomendável: Se o diretor puder assistir a tudo que mandou logar , na hora do almoço ou entre takes, para ver se ha mais alguma coisa a descartar, será sensacional.

6 - E agora vem o argumento com maior poder de convencimento: Percebemos que a pós cobrava o mesmo valor para filmes que rodam 1 hora de material e para filmes que rodaram 12 horas, apesar de um usar 4 horas de máquina e o outro 48.
O Tamis está fazendo um cálculo de quanto custa a hora de máquina e na folha de orçamento o diretor dirá quantas horas de material quer rodar e isso será cobrado como acontecia com o negativo. Com isso os filmes maiores não serão mais financiados pelos filmes menores. (obs: não estamos acrescentando um custo a mais, apenas separando este ítem do custo de pós)
A sexta decisão: Os filmes pagarão por hora de material rodado.

Esse novo esquema começa valer hoje mas estamos abertos a comentários e aprimoramento do método.

Fernando

A Desmistificação de um Ofício

Autor: Umberto Martins

A possibilidade da imagem cria a banalização da imagem.
Vem-me a cabeça uma palavra: inversão. Qualidade é quantidade? Não seria melhor preparar mais, pensar mais, planejar mais do que imprimir muito e sem critério?
Outra coisa em que fico pensando é uma doideira, pois trata da transferência de responsabilidade ou transferência de decisões. Como foi captado muito material, é transferido para o montador a responsabilidade de ver todo o material e poder tomar as decisões sobre a escolha e o momento das cenas que serão usadas na edição final.
Na hora da captação das cenas, como você pode digitalizar direto num HD com muita memória, a quantidade de material que é enviado para a montagem é absurdo. Mas ao mesmo tempo, o que eu chamo de banalização também pode ser chamado de inclusão, possibilidade de acesso à criação de imagens por todos. O mundo digital permite isso. Tem escola de cinema para índios, para os jovens favelados e das periferias. É um novo tempo, precisamos aprender a lidar com ele, embora as coisas estejam sempre mudando.
Posso contar duas experiências recentes com duas produções de filmes publicitários que editei.
RED
Antes de começar a montar tive que me informar sobre algumas coisas, como por exemplo: como montar no Avid o material originário da Red sem perder a informação do time-code nativo? Tenho que agradecer ao Thames Lustre e à equipe de montagem da O2, que após editarem em Avid a série para TV “Som e Fúria”, que teve suas imagens captadas com a RED e também com 5D, passaram-me as informações de como abrir o material através do plug-in Meta Cheater. Existem outras maneiras de fazer com outros plug-ins, mas desde então venho usando esse método.
No primeiro trabalho, um comercial de automóveis, captado com a câmera RED, o set era um câmera-car com uma grua com controle remoto seguindo um automóvel na Avenida Paulista e cercanias. A câmera não cortava nunca. As tomadas têm cerca de 30 minutos em média.
Captava direto no HD da câmera de 600 GB, quando cortava a câmera demorava muito para reiniciar, por esta razão, optou-se por não cortar em nenhum momento.
Em cada uma dessas tomadas eu tinha o plano geral, o médio e o mais fechado, detalhes das rodas, faróis, grade dianteira, etc. Imaginem a dificuldade para separar o material, classificar o que é o quê, para ter acesso mais fácil na hora de montar, se numa mesma tomada você tem vários planos? Só o material exterior-dia de um dos automóveis tinha 6 horas captadas. E estou falando de comerciais de 30 segundos.
Um novo critério para se ver o material: eu me deparei nesse mesmo trabalho com uma tomada de 33 minutos. A tomada consistia em um tilt. Correção da câmera do painel do automóvel para a alavanca de câmbio automático. Painel - câmbio, câmbio – painel: 33 minutos.
Eu precisei ver todos os movimentos para poder escolher o melhor, mas é tudo igual. Muitas vezes foi preciso acelerar os movimentos, então qualquer tomada serviria? O total do material captado nesse trabalho foi de 16 horas, eu tive que entregar três comerciais de 30 segundos mais 3 minutos de banco de imagens para o cliente. O material captado foi aberto no Pablo da Casablanca, descarregado numa fita HD. Recebi uma cópia do material em mini DV. Digitalizei no Avid na mesma qualidade, só para montar. Depois de montado exportei um EDL. O filme montado foi conformado na Casablanca e feito um color grading, somente do filme montado.
5D
Estou convivendo hoje, também num trabalho para publicidade, com 21 horas de material para três comerciais de 30 segundos. O material foi captado com três câmeras 5D simultâneas. Depoimentos, mais cenas de cobertura para poder ilustrar os depoimentos. Foram 60 horas de trabalho, só para poder importar o material para dentro do computador onde seria editado.
Recebemos o material num HD de transporte e abrimos em qualidade DV no Avid, somente para a montagem. Antes de filmar, foi feito um teste de sincronismo com a 5D. O som gravado num DAT segurou um sincronismo absoluto em tomadas de até 10 minutos de duração, a partir daí passou a variar, mas nada que não desse para ajustar na “gilete”. Graças à Deus, à Santa Edite e ao Dr. Shutz, bateram a claquete. Para quem não sabe, essas são as entidades máximas que habitam as salas de montagem e edição.
Para abrir esse material no Avid, levamos mais ou menos de 2,5 a 3 para um, ou seja, para cada 1 minuto de material captado gastamos 2 e meio a três minutos para abrir.
Esse trabalho de importar os materiais a serem montados é feito pelo assistente de ilha ou pelo assistente de montagem, profissionais que hoje em dia precisam ter conhecimento de informática.
Importar o material é um trabalho que deve ser feito com o maior cuidado e organização possível, porque é dessa organização que partirá todos os EDLs, listas OMF, etc. Eu só estou na ativa ainda porque conto com a ajuda de assistentes, em geral jovens, que têm familiaridade com a linguagem dos computadores e da informática.
Depois de montarmos o filme, conformamos a montagem no Final Cut em qualidade Full HD. Exportou-se um Quick Time Movie sem compressão para a Casablanca, onde foi feito o color granding final.
Esses filmes foram produzidos pela produtora Movi&Art.

É muito doido, mas não tem volta. E a velha máxima de que o material é Rei, foi pro brejo? Será que vamos ter que assistir o material em fast? Ou é só uma questão de educação?
É preciso urgentemente que se crie algum critério para captar imagens no formato digital. Até lá, vamos seguir os critérios já estabelecidos pela cinematografia? Por favor, pensem antes de captar.
Eu estou no exercício da função de montador de filmes publicitário há 37 anos e já passei por outras mudanças. Deixei a moviola e, infelizmente, passei a montar naquelas ilhas Umatic. Era um horror, não tinha precisão nenhuma, foi um tempo muito ruim.
Depois passei a editar com Avid, o que foi um prêmio. Consegui novamente pensar a montagem do filme como eu pensava na mesa de montagem, o processo de raciocínio é o mesmo. Confesso-me um devoto do Avid. Hoje em dia os produtores querem forçar a barra para que nós, os montadores, usamos o Final Cut porque é mais barato. A geração Final Cut é composta pelos mais jovens. Os velhos contadores de história como eu preferem o Avid.
Estive recentemente fazendo um trabalho na Argentina, e fiquei sabendo que a Associação das Produtoras de Filmes Publicitários de lá patrocinou uma pesquisa com os montadores acerca de suas preferências por equipamentos de edição e montagem. Não deu outra: Avid na cabeça. Só um montador consultado preferiu o Final Cut.
É preciso “domar” as pessoas envolvidas na captação de imagens pelo método digital. Depois da produção, existe a pós-produção. O excesso de material está matando os montadores, inclusive de fome, porque o montador trabalha agora, no mínimo, quatro vezes mais, sem contar o tempo necessário para importar o material.
Toda mudança é dolorosa.
O mundo digital é prejudicial à coluna cervical dos montadores.

Fernando Meirelles

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